quarta-feira, janeiro 17, 2007

Uma cultura de ignorância

A questão do aborto está mais uma vez na ordem do dia. É certo que uma parte significativa dos cidadãos não lhe dá tanta importância como à época de saldos, aos quilos que a balança marca, aos custos dos SMS, aos resultados da I Liga, às vitórias (ou não) do Mourinho na Inglaterra, à Opa da Sonae sobre a PT ou às variações do Nasdaq na Bolsa. Longe de mim desviar as atenções de quem quer que seja de fenómenos tão vitais e estratégicos para a história da humanidade com assuntos tão comezinhos como este. A verdade é que não posso ficar indiferente à panóplia de argumentos que têm sido avançados (quer pelos defensores do sim quer pelos do não) que nada dignificam a nossa espécie, e que nos põem a olhar para um verdadeiro espelho de indiferença e banalidade bacoca que muitos de nós se recusa perceber... Não consigo compreender (admito que possa ser defeito meu) que a discussão de um assunto como o aborto se reduza à utilização sistemática (pelo menos três-mil-quinhentas-e-trinta-e-duas-vezes-por-dia) da palavra "obscurantistas" para caracterizar aqueles que defendem o não, como sendo representantes do conservadorismo impeditivo do progresso da raça, herdeiros de uma sociedade rural, ignorante, salazarenta, pseuso-moralista, em oposição aos espíritos iluminados dos novos Voltaire e Diderot da modernidade, intelectuais de fina estirpe (acabados de sair das faculdades, alguns com grandes mini-saias para animar o pessoal...), capazes de discorrer abundantemente com laivos de inteligência estratosférica sobre os mais diversos temas do conhecimento humano, desde o envio de tropas para o Iraque até aos conflitos na Bielorússia, aos progressos da tecnologia no Japão, às várias espécies de venenos para acabar com as baratas na China, aos centímetros de costelas descarnadas das crianças do Sudão, ou aos efeitos da praga das pulgas dos cães no aumento das colónias de gafanhotos no Burundi. Qual o campónio do interior, velho, católico, e naturalmente pacóvio, seria capaz de tão brilhante diarreia intelectual?

Sejamos claros e deixemo-nos de maniqueísmos idiotas. Os defensores do sim ao aborto são, na sua maioria, "gente boa", defensora dos direitos humanos, da liberdade, do acesso igualitários aos cuidados de saúde, à educação, à intervenção política e cívica, etc., etc., etc.. Curiosamente, os defensores do não também! Então, o que é que distingue gente boa que quer o aborto de gente boa que não quer o aborto? É o valor dado à vida, dizem alguns. Mas eu tenho amigos (gente muito boa....) que defendem o aborto e que se dizem intransigentes defensores da vida!... Então, em que é que ficamos?

É isto que sinceramente me aborrece... Num assunto em que a ciência já avançou o suficiente para poder esclarecer em boa parte os cidadãos, evita-se trazer a ciência à arena da discussão para que ela não inquiete as consciências. É preferível vivermos na ignorância (achando que somos todos doutores) do que sermos confrontados com verdades que exigem tomadas de posição desconfortáveis para o nosso modernismo intelectual condizentes com os valores que dizemos defender. Por isso, cortando a voz à ciência, é possível entramos em discussões altamente esclarecedoras como "Os adeptos do sim não defendem o direito à vida" ou "Os adeptos do não querem impedir-nos de entrar na Europa civilizada". Ou então, partindo de factos, reduzi-los a meras opiniões: "o feto no seio materno constitui uma vida humana desde a sua concepção" ou, em contradição, "aquilo que está na barriga das pobres-mulheres-desgraçadas-que-têm-que-recorrer-ao-aborto-clandestino (não convém falar de "feto" porque o termo é desconfortável...) é apenas uma coisa, um vegetal".

Perdoem-me os que não concordam comigo (estão a ver como é bom vivermos em democracia?), mas não consigo pensar que nas minhas primeiras dez semanas de vida (dos nove meses que estive no seio da minha mãe) fui uma hortaliça! Eu sei que existe ainda a hipótese da couve lombarda, da alface ou do repolho... Mas também não acho agradável, e até me dá uma volta ao estômago. Provavelmente nos próximos tempos terei que fazer algumas adaptações aos meus hábitos alimentares... Mas o que eu acho mais extraordinário é esta capacidade que nós, seres inteligentes e brilhantes temos, de conseguirmos vislumbrar, precisamente às dez semanas de gestação (e zero segundos), aquele que é sem dúvida o maior milagre da humanidade: a transformação de uma hortaliça num ser humano! Já estou a imaginar as nossas televisões em emissão especial: a RTP providenciará uma emissão extraordinária do "Dança Comigo"; a SIC levará todo o pessoal para a Freiria e fará um episódio super-mega-fixe da Floribella"; a TVI colocará no ar mais um daqueles programas lamechas em que artistas famosos vão cantar para arranjar uma cadeira de rodas para uma menina do concelho de Macedo de Cavaleiros que não consegue andar. Os festejos da passagem de ano vão ser reeditados. Os mágicos e bruxos mais famosos da actualidade (incluindo o Harry Potter e o Luís de Matos) estarão presentes e prepararão as suas varinhas para garantir o sucesso da transformação. Lá fora, bruxas anónimas farão uma manifestação de protesto por as não terem deixado colaborar. E o grande momento acontecerá. Quanto o relógio bater as doze badaladas das dez semanas, eis que uma hortaliça (provavelmente uma couve portuguesa) perderá as suas características tão apreciadas de acompanhamento privilegiado das batatas com bacalhau (e grão, adoro grão...) para se tornar, imaginem só, uma criança. Que espectáculo hilariante. O público comentará: "Como é que eles fizeram aquilo?" ou então "Bem..., o Luís de Matos é mesmo bom!"...

Não, meus amigos, ao contrário do que parece, não acho que devamos brincar muito com este assunto. Já se tem brincado demais. A estupidez dos argumentos já chegou longe demais. Sou claramente a favor da vida, e independentemente das minhas opções políticas, religiosas e outras que tais não posso ficar indiferente a uma cultura de ignorância em que se pretende enfaixar a opinião pública. Muitas das coisas que se dizem no contexto das actuais campanhas não têm importância nenhuma em comparação com este fenómeno central que é a defesa intransigente do direito à vida. O aborto clandestino é um drama, os abutres que vagueiam nesses meios e que ganham muito dinheiro à custa das mulheres com problemas são um atentado a uma sociedade que se diz democrática, etc., etc. É verdade. Mas o aborto enquanto tal não pode ser a solução porque põe em causa o direito mais central de toda a existência humana, devidamente preservado na Constituição: o direito à vida.

Não gosto, sinceramente, de muitos dos argumentos que têm sido lançados no âmbito da campanha sobre o aborto. Não gosto de trocas de acusações minimalistas da dignidade humana, de considerações sobre campanhas milionárias, de reflexões sobre o aumento da despesa pública e sobre a utilização dos meus impostos para fazer abortos. Não está em causa a verdade dos argumentos. Só que acho que não são dignos, porque o que está em causa é a vida humana, e essa não precisa de argumentos financeiros para ser defendida. Pelo menos, eu entendo que não devia precisar. Mas, provavelmente, sou eu que estou errado!

Eu sei que se o sim ao aborto vencer, nos arriscamos a ver, nos hospitais públicos, pessoas que estiveram dois anos e meio à espera de uma operação, muitas delas vivendo dramas humanos que não se desejam a ninguém e com níveis muito baixos de qualidade de vida, a terem que esperar ainda mais alguns meses pela sua operação por causa do aparecimento de mulheres grávidas que querem abortar. É certo que o direito à igualdade colocaria essas mulheres na lista de espera do Serviço Nacional de Saúde, o que as faria esperar dois anos e meio ou mais pelo aborto. Mas como qualquer um de nós compreenderá, isso não poderá funcionar assim, pelo que é bem provável que outras pessoas, também elas boas e sofredoras, também elas dignas de figurarem nas listas de preocupações e prioridades dos partidos políticos e demais movimentos de cidadãos, possam vir a ser prejudicadas. "É isso, sim senhor", dirão alguns; "é mentira e demagogia pura", dirão outros. E no "diz-se-que-diz" lá voltamos nós ao mesmo nível de discussão!...

Não nego que estas e outras questões possam ter peso no momento do voto. Por isso são usadas. Mas, sinceramente, para mim elas perdem todo o seu valor a partir do momento em que alguém se atreve a invocá-las para defender (ou, nos casos contrários, para negar como tópico de discussão) uma coisa tão simples e fundamental como é o direito à vida. Para mim o direito à vida defende-se por si mesmo, e qualquer outro argumento só contribui para o diminuir.

Se o problema é perceber se o embrião nas primeiras dez semanas é já uma criança só porque já tem os traços faciais do ser humano, só porque já possui nariz e boca, só porque já tem todos os dedos das mãos e dos pés perfeitamente desenvolvidos, só porque já apresenta ambos os lábios bem definidos e os olhos com pálpebras individualizadas (e não sou eu que digo isto, porque do assunto não percebo nada, mas especialistas - médicos e professores - de genética, pediatria, cardiologia, biologia, embriologia, ginecologia, obstetrícia, neonatologia, etc...) ou se pura e simplesmente é um repolho esquisito, então que se convoque a comunidade científica para nos explicar A TODOS (mesmo àqueles que acham que não precisam porque sabem de tudo, até daquela questão das pulgas dos cães do Burundi) o que se passa efectivamente com o embrião humano nas primeiras dez semanas. Não se evite a sua participação nos debates nem se partidarize a questão. E se for preciso, convoque-se também as associações de agricultores para nos ajudarem a perceber se é normal a produção de hortaliças esquisitas com olhos, boca, nariz, dedos, braços, pernas, etc... Mas, por favor, que os pseudo-intelectuais (no circo têm outro nome...) que não percebem nada do assunto dêem lugar, nos meios de comunicação social, a quem nos pode realmente informar. A decisão será depois de cada português que for às urnas. Só assim ele o poderá fazer em consciência. O resto... são tretas!

1 comentário:

Antonio Appleton disse...

Também creio que se fala de mais e se colocam muitas questões colaterais que apenas servem para tentar tocar o "lado emocional"sobretudo no lado do "sim".
Coitadas das mulheres presas (nenhuma)
Coitada que a gravidez lhe vai estragar:
- a carreira
- a formação da sua personalidade
- O seu projecto de vida
- O seu corpo "danone"
- A sua tendência para a premiscuidade porque..é moderno
- Porque o namorado a abandonou...
Coitada, coitada, sim, coitada....
Sabemos tudo isto, sabemos que para alguns ter "cérebro" é ser humano, como humano é a ideotice, a estupidez, a ignorância, a maldade, a frivolidade, os maus hábitos, a falta de respeito por tudo e todos (é muito moderno)na linha que o tal "cérebro" produz na lógica do "faz o que sentes", como se constata em certas campanhas publicitária.
No fundo, seja para aqueles que defendem o Não (eu), seja para aqueles que são pelo Sim, todos dizem defender a vida humana, e para alguns (os do Sim) receio que, para além do mais, a lógica seja a de que os fins justificam os meios, e isto é que me preocupa, pois de facto DISCUTE-SE É O VALOR DA VIDA HUMANA, aliás como se voltará a ver quando a questão da EUTANÁSIA cá chegar!
Não se pense, Sr.s do "sim" que as coisas não estão ligadas, porque estão, e olhe, Sr. Anónimo deste Blogue, que os futuros EUTANASIADOS têm cérebro.....

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