terça-feira, fevereiro 06, 2007

Afinal, quem tem medo da verdade?

Ouvi, estupefacto, ontem, na rubrica semanal “Notas Soltas” da RTP, os argumentos de António Vitorino a propósito do referendo sobre o aborto. Segundo este conceituado político da nossa praça, a única coisa (pasme-se!) que está em causa no referendo do próximo dia 11 é a despenalização das mulheres que decidem abortar. Atenção que eu ouvi muito bem, pois, graças a Deus, não sou surdo nem vítima de alguma tentativa de aborto falhado que tenha deixado mazelas. Quer isto dizer que, segundo António Vitorino, quem não quiser que as mulheres sejam penalizadas por abortar não precisa de pensar em outras soluções para o problema mas tão-só em votar “sim” no referendo. Já ontem o primeiro-ministro José Sócrates afirmava exactamente o mesmo. E basta ouvir os tempos de antena da maioria dos defensores do “sim” para se perceber que essa é a mensagem de quase todos eles. Unidade, neste caso, não parece faltar. Simples e eficaz: basta votar “sim” e acabamos com a penalização. E só com a penalização...

Já confuso com tudo isto, decidi olhar então mais uma vez para a pergunta que vai a votos no próximo domingo: “Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?” E perguntei-me: mas se a questão é só sobre a despenalização, porque é que é necessário gastar vinte e cinco palavras, três vírgulas e um ponto de interrogação numa coisa tão simples? Não seria desejável ser-se mais directo e mais poupado no texto? Não ganharia a transparência com essa redução?

Mas a quem interessa afinal a transparência? Goste-se ou não se goste da verdade, é-se obrigado a reconhecer que a pergunta contém outros objectivos. Um deles é conceder à mulher absoluta exclusividade na tomada de decisão em abortar. Dizem os defensores do “sim” que se trata de evitar pressões exteriores que levem ao aborto induzido. Resposta atraente, sem dúvida, ao nível do melhor que se faz em marketing. Mas, mais uma vez, ficamo-nos pela “meia verdade”. Ponhamos a questão ao contrário: como é que um homem que não quer que a mulher aborte pode defender o seu interesse e desejo de ser pai se ela quiser mesmo abortar? Todos sabemos que a mulher tem a missão mais difícil no processo de gerar uma criança. Mas defender que os vinte e três cromossomas que o homem transmite ao embrião (exactamente os mesmos da mulher) nada valem se esta assim o entender é pôr em causa o mais elementar direito de igualdade que tem estado na base do progresso civilizacional nos últimos dois séculos. Por esse prisma passará a ser absolutamente legítimo afirmar que qualquer criança que nasça é muito mais filho da mãe que filho do pai!...

Mas a situação de “gato-escondido-com-o-rabo-de-fora” que a pergunta que vai a referendo protagoniza não se esgota na despenalização e no primado decisório da mulher. Sob o pretexto do combate legítimo ao aborto clandestino, aponta-se para a utilização dos estabelecimentos de saúde legais para a realização de abortos. Esta prática podia levar-nos a múltiplas considerações. Deixo, contudo, apenas uma reflexão. Se é certo que, no caso de vitória do “sim”, as clínicas privadas podem vir a negar a realização de abortos, se assim o entenderem, já os hospitais públicos o não poderão fazer. Os médicos sim, podem fazê-lo, alegando o estatuto de objecção de consciência, mas o hospital não pode fechar as portas a uma mulher grávida que se apresente para abortar. Sejamos realistas: o que pode acontecer se todos os médicos de um determinado hospital decidirem invocar a objecção de consciência para não assistirem a casos de aborto? Como é que o Estado vai descalçar a bota de ter que atender uma cidadã que, de acordo com a lei, requer os serviços desse hospital para abortar, sem ter médicos para o fazer? Alguém tem dúvidas sobre as pressões que vão passar a ser exercidas sobre os médicos? Quem é que vive na ingenuidade ou no mundo da lua?

Mas o principal, aquilo que mais divide os adeptos do “sim” e os do “não” nesta campanha do referendo sobre o aborto é a questão da sua liberalização. Ao votar-se “sim” no referendo está-se a assumir claramente a liberalização de uma prática que todos dizem ser má, mas que, à falta de imaginação e de vontade em encontrar alternativas, alguns preferem tornar legítima por força de lei. Os adeptos do “sim” fogem à esta questão da liberalização como o diabo da cruz. É por isso compreensível que continuem a falar apenas de despenalização e, às vezes, do aborto clandestino. Nesta luta de ideias bem como no motivo real que a inspira – o facto de existir um ser vivo no embrião – o melhor é fingir que se não vê...

Para mim, e julgo que para a maioria dos adeptos do “não”, o centro de todo o problema é a inevitabilidade de, na gravidez, estarmos perante um ser vivo, em processo de formação, é certo, mas já imbuído de dignidade, para não se falar dos atributos físicos claramente detectáveis nas ecografias ainda antes das dez semanas. Não é possível que alguém que se diga defensor da vida e dos direitos humanos não seja sensível a uma realidade que não é um argumento da treta, mas um facto cientificamente inquestionável. Ainda na passada semana, no programa “Grande Entrevista”, da RTP, o Director do Instituto de Biologia Molecular e Celular da Escola Superior de Biomédicas, da Universidade do Porto, Dr. Alexandre Quintanilha, defensor do “sim”, reconhecia que o embrião era portador de vida, afirmando mesmo que outra coisa não seria possível tendo em conta que dali ia surgir uma criança. Instado a explicar-se, então, porque é que, nessas circunstâncias, defendia o “sim”, o reputado investigador balbuciou que tinha dúvidas que às dez semanas já se pudesse considerar esse ser como “pessoa”. Não deixou de ser caricato verificar como um ilustre cientista como este não conseguiu, confrontado com as suas próprias afirmações, evitar meter os pés pelas mãos...

Goste-se ou não se goste, a ciência desta vez está do lado dos “obscurantistas” e “conservadores” defensores do “não”. Doa a quem doer. Os adeptos do “sim” ainda tentaram mobilizar especialistas para defender os seus pontos de vista, mas os resultados têm-se revelado escassos e pouco satisfatórios. Daí a inflexão de estratégia que se tem visto nos últimos dias, por forma a fugir-se ao confronto com a realidade substantiva do aborto para se centrar em aspectos absolutamente laterais (ainda que importantes) como a despenalização. É por isso que os actuais discursos do primeiro-ministro, de António Vitorino, de António Costa ou de Pedro Silva Pereira, entre outros, são tão orientados pelas mesmas premissas e, simultaneamente, tão significativos pela banalidade de que se revestem. E mais grave que tudo: pela falta de verdade que protagonizam. A intenção parece ser oferecer aos cidadãos um verdadeiro cavalo de Tróia: muito bonito por fora mas cheio de perigos por dentro... E em democracia (pelo menos na democracia que cabe nos meus conceitos) a falta à verdade acaba sempre por se pagar caro.

No sábado passado, numa sessão de esclarecimento que teve lugar em Torres Vedras, a jurista Dra. Isilda Pegado afirmou que em mais nenhum país da Europa existe o aborto “a pedido” tal como o “sim” quer ver estabelecido em Portugal. Essa realidade só existe em dois países do mundo: a China e a Coreia (creio que a do Norte). A vitória do “sim” no referendo do dia 11 pode colocar Portugal no pódio e ao nível desses dois países no tratamento desta realidade. Eu sei que a nossa aproximação estratégica face à China é um desejo que está em marcha, mas não creio que isso se aplique à questão dos valores e dos direitos humanos...

No início desta campanha pensei que os extremismos de posições a que se assistia nos discursos de muitos adeptos do “sim” e do “não” se deviam a pura ignorância e má informação. Não mudei completamente de opinião, mas reconheço que já não há mais desculpas para a ignorância. Negar ou omitir realidades que são consensuais entre os especialistas só porque não dá jeito é jogar com a vida e a morte ao sabor da adrenalina da luta político-partidária. O nervosismo parece invadir aqueles que não querem ver discutidos nesta campanha todos os assuntos relativos ao aborto. Os avisos sucedem-se: cuidado que nesta última semana os adeptos do “não” vão lançar mentiras para nos enganar a todos...; cuidado que eles (os do “não”, claro) vão endurecer o discurso; cuidado...

Mas afinal, cuidado com o quê? Com a abertura das portas do cavalo de Tróia? Com a denúncia de que há uma verdade escondida por detrás do simples e singelo discurso da despenalização? Afinal quem é que está a agir de má-fé? Afinal quem é que está a radicalizar o discurso? Afinal quem é que teme que os cidadãos tomem uma decisão em consciência? Afinal quem é que tem medo da verdade?

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