quinta-feira, fevereiro 01, 2007

Artigo Sol

Dá que pensar, não apenas em relação a este referendo como em relação a todos os outros que aí virão!


Um primeiro-ministro de alguns portugueses?


É um lugar-comum dizer que o Presidente da República é o «Presidente de todos os portugueses».
Significa isto que, no momento da posse, o Presidente deixa de representar apenas os que votaram nele e passa a representar todos – os amigos e os inimigos, os que o aplaudiram e os que o hostilizaram, os que fizeram campanha por ele e os que militaram contra ele.
Nunca se fala nestes termos, porém, do primeiro-ministro.
Será que o primeiro-ministro é também o primeiro-ministro de todos os portugueses ou apenas de alguns?

A resposta a esta questão tem que ver com a ideia de Estado.
Em minha opinião, enquanto um político é líder de um partido existe no plano partidário; mas, a partir do momento em que se torna chefe do Governo, passa a existir no plano do Estado.
E o plano do Estado exige outra atitude, outra postura e outro comportamento.
Exige, logo à partida, isenção.
Não se concebe um representante do Estado que não seja isento – até porque o Estado, sendo sustentado pelo conjunto dos cidadãos, deve tratar todos da mesma forma.
E aqui não se vêem diferenças substanciais entre o Presidente e o primeiro--ministro.

Vem isto a propósito da participação de José Sócrates na campanha do aborto.
Se ninguém imagina o Presidente da República a envolver-se nela, por que se aceita que o chefe do Governo o faça?
Terá um estatuto de menoridade?
Terá menos deveres de independência no exercício do cargo?
Será correcto vestir de manhã a pele do primeiro-ministro e à noite a de líder partidário?
Será aceitável uma mesma pessoa ser ao mesmo tempo duas coisas?
Imagine-se que Cavaco, invocando a sua qualidade de cidadão, decidia também participar na campanha, defendendo o ‘Não’ ao aborto.
Poderíamos então ter, num mesmo dia, Sócrates a gritar num comício pelo ‘Sim’ e Cavaco a discursar ao lado a favor do ‘Não’.
Alguém acharia isto normal?

O envolvimento de membros do Governo na campanha do aborto levanta outro problema.
Embora digam que o fazem a título pessoal, a verdade é que a presença destacada de alguns ministros ou secretários de Estado na campanha só se justifica pelos lugares que ocupam.
Se não fossem governantes, a notoriedade que têm na campanha não faria sentido – dado que quase ninguém os conheceria.
Ora é legítimo que membros do Governo tirem partido da sua posição oficial para, num referendo, apoiarem uma das partes em confronto?

Esta indefinição que hoje existe, com políticos que ora surgem como membros do Governo ora se apresentam como dirigentes partidários, não é nada saudável.
E essa indefinição, ao contrário do que muitos possam pensar, prejudica José Sócrates – porque diminui a imagem de independência e distância que devem ter as figuras do Estado.
Além de que, se o ‘Não’ ganhar, ele e o Governo sairão derrotados.
Ora o Governo deve ser julgado por aquilo que fez e não fez – e não pelas posições do primeiro-ministro ou de ministros em relação a este ou aquele tema.

José António Saraiva in SOL

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